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Quem recorre a essa técnica primeiro deve instalar um acesso no abdômen
Não pense que a diálise peritoneal (DP) é recente. Embora tenha
evoluído ao longo dos anos, ela foi testada pela primeira vez na década de 1930
— antes da hemodiálise. E o objetivo é o mesmo de sua prima: filtrar o sangue de
pessoas com doença renal crônica, um mal caracterizado pelo comprometimento dos
rins. Entre as diferenças, a hemodiálise requer três visitas a uma clínica por
semana, enquanto a DP costuma ser feita ao menos uma vez por dia, mas em casa.
No médio prazo, ambas apresentam taxas de sobrevida parecidas e são custeadas
pelo sistema público.
“Ainda assim, na maioria dos países cerca de 90% dos pacientes
recorrem à hemodiálise”, contextualiza o nefrologista Miguel Carlos Riella,
professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). No Brasil,
somente 7% dos pacientes utiliza a DP, embora o Ministério da Saúde preconize
uma taxa de 20%. Essa recomendação ganha força na medida em que o Congresso
Americano de Nefrologia, recentemente sediado em Chicago, reservou bastante
espaço para debates envolvendo o uso da diálise peritoneal. Ancorados nisso e na
conversa com especialistas, explicamos as vantagens e limitações de cada
estratégia.
Hemodiálise
Por meio de um cateter em geral instalado no braço, o sangue
deixa o corpo e é filtrado em uma máquina. Em mais ou menos três horas, ele fica
limpinho e o sujeito pode voltar para sua casa — mas vai precisar retornar à
clínica outras duas vezes na semana. “A obrigatoriedade de ir a esses locais
traz, por si só, boas e más notícias”, pondera a médica Zita Brito, diretora
técnica do Centro de Rim e Diabetes do Hospital 9 de Julho, em São Paulo. Começando pelo lado positivo, essas idas e vindas promovem um
contato frequente com profissionais de saúde, o que facilita o manejo de reações
adversas e a detecção de eventuais problemas. Na contramão, tantos deslocamentos
bagunçam a rotina mesmo de gente que vive em grandes centros urbanos.
Agora
imagine uma pessoa que tem de viajar para uma cidade vizinha onde haja um
aparelho de hemodiálise. “As ambulâncias passam de madrugada nas casas,
percorrem quilômetros na estrada para deixar os pacientes e, no fim do dia,
trazem-nos de volta”, diz Riella. “Nesses casos, o desgaste é enorme”, completa. Além disso, a hemodiálise exige a aplicação de um anticoagulante
— caso contrário, há risco de trombos se formarem e provocarem estragos sérios,
como um AVC. Acontece que esse tipo de medicamento é contraindicado para
indivíduos com suscetibilidade a hemorragias internas ou sangramentos. Aí a
diálise peritoneal aparece como uma alternativa.

Diálise peritoneal
Quem recorre a essa técnica primeiro deve instalar um acesso no
abdômen — é através dele que uma máquina (a cicladora) infunde um líquido
batizado de dialisato. Essa solução, então, entra em contato com o peritônio,
uma membrana que recobre os órgãos e serve como uma espécie de filtro, passando
para o dialisato as substâncias tóxicas que se acumulam no sangue de quem tem
problemas nos rins. De tempos em tempos, a própria cicladora remove o líquido
sujo e aplica uma nova dose. O processo costuma ser feito no período noturno,
inclusive durante o sono, e dura no máximo dez horas, embora precise ser
repetido diariamente.
O conforto de não precisar visitar uma clínica três vezes por
semana melhora a qualidade de vida de muita gente — inclusive, as bolsas com
aquele líquido são entregues na casa do paciente de graça. “Mesmo assim, essa
pessoa necessita ir ao médico pelo menos uma vez por mês, inclusive para
realizar exames”, avisa Zita. Além disso, essa maior liberdade exige responsabilidade para não
abandonar o tratamento. É absolutamente fundamental seguir as recomendações
médicas quanto à frequência de sessões e de outras particularidades desse método
para que ele seja de fato efetivo. “Temos de fazer um treinamento que engloba
inclusive a higienização”, destaca Riella. Antes de aplicar o dialisato e ligar
a máquina, por exemplo, é mandatório lavar as mãos e até pôr uma máscara para
evitar a peritonite, uma infecção no peritônio. “Hoje a incidência desse
problema é baixa, da ordem de um evento para cada dois anos e meio de uso mais
ou menos”, calcula Riella. Entretanto, sem os devidos cuidados esse número pode
subir. “No fim das contas, a decisão entre uma técnica e outra depende
do paciente e de suas condições. O problema é que, atualmente, a opção da
diálise peritoneal não é debatida como deveria”, lamenta Riella.
Acompanhamento à distância
Um dos destaques do Congresso Americano de Nefrologia é um
software apresentado pela empresa Baxter que facilita o monitoramento de pessoas
que se valem da DP. Em resumo, ele coleta informações da própria cicladora e
outros dados básicos digitados pelo paciente para, então, disponibilizá-los ao
médico. Com isso, fica mais fácil para o doutor notar deslizes nas sessões ou
sinais suspeitos de que há algo errado. Esse programa deve chegar em 2017 no
Brasil.
Por que nunca ouvi falar da diálise peritoneal
antes?
Não pense que esse desconhecimento geral tem a ver com uma
eficácia muito maior da hemodiálise. Até se discute que ela poderia ser usada
por mais tempo em comparação com a DP, porém o fato é que não há grandes
empecilhos em substituir um método por outro no caso de uma eventual
necessidade.
Segundo os especialistas entrevistados, o pouco uso da DP no
Brasil — e em vários outros países, para falar bem a verdade — se deve a fatores
que fogem das características intrínsecas dela e da alternativa. O primeiro
envolve a educação do profissional de saúde. A maioria dos médicos brasileiros
está acostumada a lidar com a hemodiálise, mas não tem tanta familiaridade com a
DP. Nesse contexto, boa parte dos doutores teria até receio de lançar mão de uma
tática com a qual não se sente tão preparada para fazer eventuais ajustes ou
mesmo contornar complicações.
Fora isso, há um entrave econômico. A maioria das clínicas está
baseada na hemodiálise — logo, a popularização da DP culminaria em gastos para
adaptá-las e, possivelmente, em um menor ganho, já que a quantidade de
atendimentos cairia. Existem ainda custos atrelados à instalação do acesso
peritoneal e, se surgir uma infecção, aos antibióticos. “Aqui no Brasil nunca
houve uma política de incentivo. No México, em que existia um forte estímulo
para a diálise peritoneal, aproximadamente 60% dos pacientes a utilizavam”,
exemplifica Zita. Claro, também não dá para ignorar a necessidade de um maior
autocuidado. Se o doente não tem condições ou disposição para fazer a
higienização e seguir o protocolo de tratamento da DP, a hemodiálise é mais
segura mesmo. Só tenha em mente que você é parte ativa dessa história e pode
participar da decisão.
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