Natal, década de 60, em
algum lugar entre os bairros das Rocas e Quintas. Garotos se divertem
provocando uma senhora trôpega, suja e maltrapilha. Os meninos fazem coro:
"Rocas-Quintas"! E ela, com o dedo em riste, revida: "Me
respeitem, que eu tive vida importante"! A zombaria continua, e a mulher,
que se tornou folclórica por fazer todo santo-dia, a pé, o mesmo itinerário da
linha de ônibus Rocas-Quintas (daí o apelido), retoma as passadas ligeiras e
nervosas, parando sempre para catar lixo e restos de coisas podres.
Caicó, final da década de 50. Júlia Augusta de Medeiros, uma das mulheres
pioneiras no jornalismo e na educação no Rio Grande do Norte nos anos 20,
feminista, mulher de idéias avançadas, com participação destacada na vida
pública e política do RN, tendo sido uma das primeiras mulheres a votar no
Estado e exercido dois mandatos como vereadora, começa a apresentar lapsos de
memória e a perder a sanidade mental. O estado de saúde vai se agravando e ela,
que desafiara a sociedade assumindo uma postura ousada, termina seus últimos
anos deprimida em Natal, no mais completo ostracismo, perambulando pelas ruas
feito mendiga.
Júlia Medeiros, educadora e jornalista que um dia teve lugar cativo nas rodas
de intelectuais, gozando da amizade e apreço de gente como Câmara Cascudo e
Palmira Wanderley, é a mesma Rocas-Quintas. Em um minucioso trabalho
investigativo, o jornalista natalense Manoel Pereira da Rocha Neto, conseguiu
unir os dois capítulos extremos dessa história e contá-la na íntegra pela
primeira vez. "Júlia teve um passado obscuro, que ficou perdido, pois
enquanto Rocas-Quintas ela falava quem tinha sido e ninguém acreditava. As
pessoas a insultavam e a depreciavam", diz Manoel. O objetivo de sua tese de doutorado no Departamento de Educação da UFRN, dentro
da base de pesquisa Gênero e Práticas Culturais, era (e foi) falar das práticas
pedagógicas de Júlia enquanto educadora, mas o jornalista acabou também
mergulhando fundo na vida da personagem à medida que descobriu história tão
rica e dramática.
Centro de Caicó/RN, década de 20 do século XX. Foto: Manoel Ezelino
O autor, além de conseguir conceito máximo com a tese, acabou quitando uma
dívida com a memória de Júlia Medeiros. "Em cinco anos de pesquisa, não
encontrei quase nada em livro, a não ser algumas poucas citações, e também uma
monografia do curso de História, em Caicó, sobre Júlia, mas muito superficial.
A casa em que ela morou em Caicó foi demolida e no lugar existe atualmente uma
boutique. Já a casa em que ela viveu em Natal, na rua da Misericórdia, Cidade
Alta, foi demolida para a construção de uma praça. Até o túmulo e seus restos
mortais, no Cemitério Parque, em Caicó, foram violados e extraviados. Ela não
tem direito sequer a ser lembrada como cidadã no Dia de Finados. Em sua cidade
natal, deu nome a uma rua e a uma escola. Foi só", fala.
Imagem antiga do Mercado
Público de Caicó - inaugurado em 23/02/1918
A história de Júlia Medeiros, do nascimento à morte (1896 a 1972), foi
totalmente reconstituída pelo jornalista Manoel Pereira da Rocha Neto e contada
com riqueza de detalhes em seu trabalho. A maior parte das informações ele
coletou com pessoas que foram vizinhas de Júlia, em Caicó e em Natal, e com os
ex-alunos dela. "Foi uma pesquisa difícil. A família dela ofereceu muita
resistência. Somente uma sobrinha sua, Julieta Dantas, que vive em Caicó,
ajudou, cedendo inclusive um farto material fotográfico", conta Manoel,
que chegou a pagar para conseguir uma cópia do atestado de óbito de Júlia
Medeiros/Rocas-Quintas. "A família não quis ceder, então fui até o 4º Ofício de Notas e paguei por
uma cópia", conta Manoel. O laudo deixa em dúvida se Júlia cometeu suicídio,
mas o jornalista acredita que ela tenha mesmo se matado. "Acho que o
ostracismo e a depressão contribuíram para isso. Há um detalhe importante:
Júlia morreu na madrugada do dia seguinte ao seu aniversário. Acho que em sua
loucura ela pode ter tido um momento de lucidez e lembrado a data".
"O vestir-se bem -
desejo de distinção social na Caicó de 1939"
E esse não teria sido o
único momento de lucidez em sua fase de loucura e mendicância. Certa vez, conta
Manoel, ela ficou parada observando por bastante tempo a vitrine de uma loja de
roupas. Quase foi presa ao tentar entrar. Isso só não aconteceu porque na hora
passou uma pessoa de Caicó que a conhecia e contornou a situação. "Penso que
ela estava recordando sua época de moça. As moças da alta sociedade caicoense
só vestiam as roupas feitas por Maria do Vale Monteiro, costureira mais famosa
da cidade. Mas antes Júlia tinha que vestir e aprovar. Por causa do corpo bem
feito, ela era uma espécie de manequim no município".
O jornalista conta que, antes disso, Júlia havia adquirido uma máquina Singer
pensando em fazer os próprios vestidos, como forma de relembrar a época áurea.
Ela comprou em dez vezes sem juros, na Loja Natal, o que já era um sinal também
de sua fragilidade financeira. "Júlia veio para Natal já doente e, aposentada e deprimida, começou a
perambular pelas ruas, levando sempre junto ao corpo um monte de penduricalhos.
A cada dia seu estado mental ia se agravando. Ela já não cuidava da higiene,
catava lixo e andava com roupas em trapos. Ninguém acreditava quando dizia ter
sido uma pessoa importante", diz Manoel. A aposentada Lúcia Bruno Damasceno mora na rua da Misericórdia, onde
Rocas-Quintas viveu de 1960 até 1972, e confirma a informação do jornalista:
"Ela vivia na rua catando coisas e entulhava tudo num porão em casa.
Costumava dizer que foi uma mulher de destaque em Caicó, mas ninguém
acreditava".
Participação ativa na vida
pública - Julia Medeiros votando em Caicó/RN
EXCLUIDA DA SOCIEDADE E DA HISTÓRIA
Exceção entre as meninas de seu tempo, Júlia Medeiros teve a sorte de pertencer
a uma família abastada e de visão pedagógica diferente da maioria das famílias
do início do século 20. O pai, Antônio Cesino Medeiros, detentor de grandes
propriedades de terra em Caicó, sendo a maior e mais próspera delas a fazenda
Umari, onde Júlia nasce no dia 28 de agosto de 1896, cuida desde cedo para que
a filha tenha acesso à educação. A menina aprende as primeiras letras em casa
com um mestre-escola e depois é mandada para estudar em Natal.
Júlia deixa Caicó no ano de 1910. Com 13 anos, enfrenta uma jornada de oito
dias em lombo de burro. Era uma comitiva em que estavam outras duas moças,
Olívia Pereira e Maria Leonor Cavalcanti. A futura feminista hospeda-se em uma
casa na Ribeira - a do professor de português João Vicente - e passa a estudar
no Colégio Imaculada Conceição, onde conclui o ginásio. Em 1920, faz a seleção
para a Escola Normal de Natal.
Antiga praça Jose Augusto e
o colegio Senador Guerra - Caicó/RN
Forma-se em 1925 e, um ano
depois, volta a morar em Caicó, passando a lecionar no Grupo Escolar Senador
Guerra, a mais conceituada instituição de ensino do município. A essa época já
escrevia para o "Jornal das Moças", periódico que logo passa a
redigir sozinha com a saída da fundadora, Georgina Pires. A publicação, um
marco no jornalismo feminino no Rio Grande do Norte, dura de 1926 a 1932. Júlia Medeiros também já
participava ativamente da vida pública de Caicó, envolvida com a elite
intelectual e política da cidade. Ela foi amiga, entre outros, de Juvenal
Lamartine, senador e governador em meados da década de 20, e de José Augusto
Bezerra de Medeiros, governador que dominou a política no RN até 1930.
Antiga Prefeitura de
Caicó/RN
Considerada exímia oradora,
Júlia notabiliza-se por questionar, em seus discursos de improviso, a condição
da mulher da década de 20 - cuja vida resumia-se aos afazeres domésticos. Em
suas falas em público, exigia, principalmente, o direito à educação e à cidadania.
Sua amizade com a feminista Berta Lutz e suas idas ao Rio de Janeiro - onde
tomava conhecimento da modernidade - fortaleciam ainda mais seus ideais. Júlia
choca a sociedade caicoense com seu comportamento avançado. Ela passa a usar
roupa preta - cor condenável a não ser em ocasião de luto - calça jeans e
costas nuas. Ao aparecer nas ruas dirigindo um automóvel - um ford 29
(baratinha) que compra no Rio de Janeiro com dinheiro do próprio trabalho -
promove um escândalo. Choca mais uma vez a sociedade ao recusar um pedido de
casamento e ao ir morar sozinha, na casa de número 157 da rua Seridó.
O preço da
"ousadia" acaba sendo alto. Júlia passa a ser excluída e alvo de
preconceito. Na rua, é perseguida pelas crianças, que entoam uma cantoria
assim: "Júlia Medeiros no seu carro ford, virou a princesa do
caritó". Antes de aposentar-se como
professora, em 1958, se candidata a vereadora, sendo eleita para dois mandatos,
de 1951 a 1954 e de 1954 a 1957. É nesse período que começa a apresentar lapsos
de memória e a ficar perturbada mentalmente. Em 1960, a família a leva para
Natal, entendendo ser essa a melhor opção. Júlia passa a morar sozinha, por
vontade própria, em uma casa de frente para o rio Potengi, na rua da
Misericórdia. Seu quadro de saúde vai se agravando e, na madrugada do dia 29 de
agosto de 1972, aos 76 anos, morre como a mendiga Rocas-Quintas. Louca, pobre,
esquecida e insultada; excluída da sociedade e da história.
Fonte: Itaércio Porpino/(jornal Tribuna do Norte
em edição de 18 de setembro de 2005)
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