
A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto, em Brasília (DF) - 01/04/2016(Adriano Machado/Reuters)
Há um tempo para tudo debaixo do céu, e este domingo trouxe o
tempo de Dilma Vana Rousseff e seu partido, o PT, se haverem com as
consequências da crise econômica e política que semearam. Às 23h07, com o voto
de Bruno Araújo (PSDB-PE), formou-se a maioria de 342 deputados necessária para
que o processo de impeachment que tramitava na Casa siga para o Senado, onde
Dilma poderá ser julgada por crime de responsabilidade - o placar final ficou em
367 votos contrários à petista e 137 contra o impeachment. Houve ainda 7
abstenções e duas faltas. A votação foi encerrada já perto da meia-noite. Quarta
presidente eleita desde a Constituição de 1988, a petista agora faz dupla com
Fernando Collor de Mello, que enfrentou, em 1992, o mesmo ritual de impedimento.
Chorando, Araújo proferiu seu voto já em clima de festa no plenário. "Que honra
o destino meu reservou: da minha voz sairá o grito de mudança dos brasileiros".
Ao terminar seu voto, o tucano saiu carregado pelos colegas de oposição. A
Avenida Paulista e a Esplanada dos Ministérios também explodiram em celebrações
- ao menos, é claro, o lado do muro reservado aos manifestantes pró-impeachment.
Do outro, um misto de tristeza, resignação e um discurso que afirmava que "a
luta não terminou". O ânimo dos manifestantes de esquerda, contudo, já parecia
ter se esgotado. Nas ruas, cada voto foi acompanhado como uma decisão por
pênaltis numa partida de futebol: a tensão era logo substituída pela alegria, ou
raiva.
Dilma e o PT insistem em dizer que a democracia brasileira
sofre um golpe, e que seu impeachment representará uma ruptura institucional.
Mas a votação de hoje está imune a qualquer questionamento. O governo teve ampla
oportunidade de atacar na Justiça todos os aspectos da tramitação do processo de
impeachment na Câmara. Seus argumentos foram analisados pelo Supremo Tribunal
Federal, acolhidos em alguns casos, rejeitados na maioria. Disso resultou um
rito que já não pode ser questionado. Mais importante, o impeachment requer a
maioria de dois terços do plenário da Câmara justamente para garantir que não
paire nenhuma dúvida sobre uma decisão de tamanha gravidade. Cabia ao governo a
tarefa mais "fácil": a de obter o apoio de 172 parlamentares. O fato de que não
foi capaz de fazê-lo atesta o grau de aversão a Dilma. E não foi pouco o que ela
ofereceu para cooptar parlamentares. Ou melhor: o que Lula ofereceu. O
ex-presidente, um político infinitamente mais hábil que sua pupila e sucessora,
transformou um hotel de Brasília em bunker anti-impeachment. Às vésperas da
votação, o Diário Oficial registrava nada menos que 26 nomeações feitas
como consequência do frenético loteamento de cargos promovido pelo governo. Mas
nem isso bastou. Pesou mais o sentimento registrado pelas pesquisas de opinião,
que mostram que mais de 60% dos brasileiros desejam que Dilma seja apeada o
quanto antes de seu lugar no Planalto.
Numa analogia com o processo penal, a Câmara atua como o
Ministério Público na tramitação do impeachment: observa se existem indícios de
crime e oferece uma denúncia. Cabe ao Senado o papel de julgador. É lá que a
denúncia é aceita ou rejeitada numa primeira comissão. Se for aceita em decisão
referendada pelo plenário, Dilma tem de se afastar do cargo e o mérito da
acusação deve ser avaliado em até 180 dias. Para que perca o mandato em
definitivo, é preciso que 54 dos 81 senadores julguem que ela é culpada de crime
de responsabilidade - mais uma vez, uma maioria de dois terços. Dilma,
obviamente, repetiu reiteradas vezes que não cometeu crime algum. Mas o
relatório do deputado Jovair Arantes, defendendo o contrário, é uma peça
poderosa. Pedaladas fiscais e outros atentados à ordem orçamentária da República
- os crimes de que Dilma é acusada - não representam, nas palavras de Arantes,
"atos de menor gravidade ou mero tecnicismo contábil". Eles são, pelo contrário,
"gravíssimos e sistemáticos atentados à Constituição Federal, em diversos
princípios estruturantes do Estado de Direito, mais precisamente a separação de
Poderes, o controle parlamentar das finanças públicas, a responsabilidade e
equilíbrio fiscal, o planejamento e a transparência das contas do governo, a boa
gestão do dinheiro público e o respeito às leis orçamentárias e à probidade
administrativa."
Se a presidente sofrer impeachment por crimes orçamentários, a
mensagem será poderosa. A noção de que os governantes não recebem carta branca
para realizar seus planos de governo a qualquer custo, quando ganham uma
eleição, talvez fique inscrita com fogo na ordem pública brasileira. Mas o fato
é que o embasamento jurídico é apenas um requisito do processo de impeachment.
Esse processo, na essência, é político. E no campo da política, Dilma se
autoinfligiu todos os danos. A corrosão de seu capital começou na campanha de
2014, quando ela mentiu aos eleitores sobre a necessidade de consertos na
economia. Seu segundo mandato começou com ajustes de tarifas que ela prometera
não fazer e um aumento da inflação que ela jurou que não viria. Mês a mês a
economia foi se mostrando mais frágil - e em paralelo caíam os índices de
aprovação de Dilma. Somem-se a crise economica e o declinio de seu prestígio à
incapacidade da presidente e de seus assessores mais próximos de fazer com
habilidade o jogo da articulação política, e estão dadas as condições objetivas
para o desastre. A presidente não soube, em particular, lidar com o PMDB, e
acabou transformando seu principal sócio na coalizão governista em um ninho de
inimigos figadais - o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o vice-presidente
Michel Temer, à frente. O fato de que muitos peemedebistas são alvos graúdos da
Operação Lava Jato - Cunha em particular - em nada desculpa os erros de Dilma,
nem elimina o fato de que, para governar, ela precisava saber manter sob
controle o PMDB, ou substituí-lo em sua base.
Dilma não soube fazer nenhuma das duas coisas. Na verdade, suas
tentativas inábeis de fortalecer legendas como o PSD em detrimento do PMDB só
fizeram acirrar os ânimos. Nem mesmo o apoio do partido de Gilberto Kassab, até
outro dia ministro das Cidades, ela conseguiu na votação do impeachment: a
maioria dos parlamentares do PSD votou pelo seguimento do processo neste
domingo. Do outro lado, estava um vice que circula pelo Congresso com particular
habilidade. E soube aproveitar a tendência anti-Dilma. Michel Temer adiantou os
vetores de seu mandato num áudio espalhado pouco antes da votação pela
continuidade do processo na comissão do impeachment, na última segunda-feira.
Proposital ou não, o vazamento pode ter detido um ou outro "indeciso", pronto a
ser seduzido pelas ofertas de cargos que o governo fazia a granel. A partir
desta segunda-feira, serão 31 dias até que o presidente do Senado, Renan
Calheiros (PMDB-AL) agende a data para a resolução do processo que pode encerrar
antecipadamente o governo Dilma - e a era dos governos petistas. Em Brasília,
existe a máxima de que a Câmara é a voz do povo, pois expressa os votos de todos
os rincões. Mas é o Senado da República quem ditará os dias futuros.
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