
Ele
não era um líder de massas que coubesse em um desses modelos que se tem visto
ultimamente. Não era. Em
sua época, porém, ganharia a eleição de presidente de qualquer candidato, se
ela tivesse sido decidida no voto popular.
Como
o jogo foi outro, ainda através do voto indireto, ele se submeteu às regras
postas – na verdade, impostas – e venceu no Colégio Eleitoral. Tancredo
de Almeida Neves, o autor de tal façanha, entrou para a história como o último
estadista do século 20. Ele
uniu o país em um momento excepcionalmente dramático de sua vida republicana,
marcado pelo fim do ciclo de 21 anos dos militares no poder.
O
último ato
Foi o
último ato político de uma carreira pública, iniciada em 1951, com sua primeira
eleição para a Câmara Federal. A partir de junho de 1953, foi ministro da
Justiça de Getúlio Vargas até o suicídio do presidente. Ele ainda viu o
presidente em suas últimas agonias, após o tiro que disparou no peito, em 24 de
agosto de 1954. Com a instauração do regime parlamentarista, logo após a renúncia do presidente
Jânio Quadros, em 1961, foi nomeado primeiro-ministro do Brasil. Ocupou o cargo
de setembro de 1961 a julho de 1962.
Seus
atos foram marcados sempre pela moderação. Era líder do presidente João
Goulart na Câmara dos Deputados quando este foi deposto pelos militares, em
1964.Na tumultuada sessão do Congresso Nacional que declarou vago o cargo de presidente,
ele saiu do tom. Foi uma das raras vezes que fez isso. Aos berros, chamava os
golpistas de canalhas. Durante
o regime militar, foi um dos principais líderes da oposição, filiado ao
Movimento Democrático Brasileiro (MDB), ao se reeleger deputado federal em
1966, 1970 e 1974. A seguir, elegeu-se senador. Em
1982, foi eleito governador de Minas e renunciou ao mandato para ser candidato
a presidente da República, em 1985.

O
candidato das ruas
Naquele
março de 1985, o Brasil se preparava para dar posse, enfim, ao seu primeiro
presidente civil, depois de cinco generais sem voto exercendo sucessivamente a
Presidência da República – Castello Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici,
Ernesto Geisel e João Figueiredo. Tudo
bem que Tancredo não tinha o respaldo das urnas, mas tinha o das ruas. Tancredo
fez campanha nas ruas, através de numerosos e concorridos comícios, com o
slogan Muda Brasil!
Ele
venceu no Colégio Eleitoral com 480 votos, contra 180 de Paulo Maluf (PDS). Embora
eleito pelo voto indireto, ele encarnava os sentimentos de mudança que o país
respirava naquele momento. Por
isso, o Brasil depositava nele a esperança de um reencontro com a democracia. A
vontade de tê-lo na Presidência era tamanha que os brasileiros fizeram vistas
grossas para o seu vice, José Sarney, um recém-egresso do partido dos militares
que na última hora pulou fora do barco e enfileirou-se na trincheira das
oposições.

A eleição no Colégio Eleitoral com votação consagradora
A
Nova República
Com a
vitória no Colégio Eleitoral, o ministério composto e vencidos todos os
obstáculos para a subida da rampa do Palácio do Planalto, a festa da posse,
marcada para 15 de março, era apenas uma questão de horas. O
noticiário televisivo da noite de 14 de março dava conta dos últimos
preparativos para as cerimônias que iriam inaugurar um novo tempo no Brasil,
que Tancredo chamou de “Nova República”. Os
brasileiros foram dormir, assim, na expectativa da grande festa cívica.
Quando
o país acordou, na manhã do dia 15, chocou-se com a bombástica notícia
veiculada pelo rádio e pela televisão: o presidente fora internado às pressas e
submetido a uma cirurgia de urgência, em Brasília. A
notícia que dali a instantes se reproduziria e se repetiria à exaustão pelo
país e pelo mundo afora dava fim a toda a euforia nacional. Brasília
mergulhava em clima de tensão e o Brasil, em um mar de incertezas.
Enganaram
o presidente
Tancredo
Neves, então com 75 anos, vinha sentindo dores no abdômen há dias. A princípio,
procurava disfarçar o incômodo, passando levemente a mão sobre a barriga. Não
queria aproximação com hospital. Sua
cisma fazia sentido. Havia perdido dois irmãos para o câncer. Assim, resistiu o
quanto pôde à internação. Chegou a avisar que tomaria posse de maca. Para
convencê-lo a se internar, os médicos lhe disseram que era apenas para tomar
soro com antibióticos e realizar novos exames. A
caminho do centro cirúrgico, em uma maca, apesar de já estar conformado com a
operação, reclamou para a equipe médica:
-
Vocês me enganaram, né?
Diagnóstico
falso
“Enquanto
Brasília vivia uma madrugada chuvosa e tensa, sob o diagnóstico falso de diverticulite
de Meckel, inventado para iludir e tranquilizar o assustado povo
brasileiro, começava a agonia pessoal do presidente Tancredo Neves e a do
governo”. Esta
é uma das passagens do livro que o mineiro Ronaldo Costa Couto, escolhido por
Tancredo como seu ministro do Gabinete Civil, escreveu em 1995 um livro sobre a
trajetória do ex-presidente.
Intitulado Tancredo
Vivo – Casos e Acasos, o livro publicado dez anos após a sua morte relata:
“O
médico Francisco Pinheiro da Rocha corta com seu bisturi frio o ventre inchado
de Tancredo. O caso era de abdômen agudo cirúrgico. Depois se verifica que era
inflamação de tumor benigno. Uma cirurgia simples, na avaliação médica”.
Cirurgia
em sessão pública
Contra
as normas e recomendações, a cirurgia teria sido assistida por 30 a 40 pessoas,
relata o livro. “Pouquíssimas
teriam que estar no centro cirúrgico, muito menos na disputada sala de
cirurgia, onde o excesso de pessoas, a negligência com os procedimentos
obrigatórios de prevenção e a situação específica do hospital multiplicaram os
riscos de infecção”, critica Ronaldo Costa Couto. Ele prossegue: “Eram
presenças por interesse político ou de outras naturezas. Médicos ou não, todos
os que ali estavam desnecessariamente aumentaram o risco de contaminação do
ambiente cirúrgico e do indefeso paciente”.

O
autor questiona: “Mesmo sem má-fé dos médicos ou de quem quer que seja, você
admitiria ter seu ventre aberto diante de dezenas de pessoas, caro leitor? A
maioria delas sem qualquer intimidade, relacionamento ou mesmo conhecimento com
você?” E
arremata: “Pois fizeram isso com o presidente da República naquela noite. A
cirurgia terminou às 3 horas da madrugada. A sete horas do horário da posse
perante o Congresso Nacional”. (p.194 e 195).
Nova
operação
Sarney
tomou posse, no dia 15, mas o governo ficou capengando com a ausência de
Tancredo no comando. Passavam os dias e Tancredo não dava qualquer sinal
de melhora. Ronaldo
Costa Couto registrou: “Os médicos ficam preocupados com a paralisia intestinal
do presidente que já se arrastava desde o dia 15. Concluíram que era “nó nas
tripas” e decidiram fazer uma nova cirurgia, dia 20. Uma laparotomia branca.
Não havia um único nó nas tripas do presidente. Dúvida: abriu-se a barriga dele
em vão?” (p.256).

Após esta foto de aparências, o presidente apresentou quadro de hemorrria interna
Um
show macabro
Em 25
de março, retiraram Tancredo da UTI e o puseram em uma cadeira de rodas. Ele
foi conduzido até uma sala previamente preparada. “Ali,
vestido de pijama e robe de chambre, uma alegre echarpe no pescoço, de meias e
calçando chinelos fechados, o ventre perceptivelmente inchado, posou para
fotografias com a equipe médica. Nelas,
todos riam, aparentando descontração e confiança. Mais exposição e sacrifício
do doente. Algo inteiramente dispensável. O país sofria com Tancredo, mas
estava em paz, sem nenhum sinal de instabilidade”, conta. (p.258).
Horas
depois, coincidência ou não, Tancredo sofria forte hemorragia interna. Na manhã
seguinte, era transferido às pressas para São Paulo, em uma maca, no avião
presidencial.
“No
Instituto do Coração, o Dr. Henrique Pinotti divulgava boletim médico
informando que o paciente carregava infecção hospitalar contraída em Brasília. Ele
havia acompanhado o tratamento do residente na capital e jamais falara em
infecção hospitalar”, observa o autor. Tancredo
morreria nas mãos de Pinotti, na noite de 21 de abril de 1985, vítima de
infecção generalizada, após passar por sete cirurgias, duas em Brasília e cinco
em São Paulo.
Foto:
Duda Bentes/FGV - Arquivo:
EBN
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