ELE VOLTOU –
No depoimento, que também foi gravado em vídeo, Valério reproduz o diálogo que
teve com Ronan Maria Pinto, em que ele teria dito que apontaria Lula como o
“cabeça da morte de Celso Daniel” (./.)
No fim da
década de 90, o empresário Marcos Valério Fernandes de Souza começou a
construir uma carreira que transformaria radicalmente sua vida e a de muitos
políticos brasileiros nas duas décadas seguintes. Ele aprimorou um método que
permitia a governantes desviar recursos públicos para alimentar caixas
eleitorais sem deixar rastros muito visíveis. Ao assumir a Presidência da
República, em 2003, o PT assumiu a patente do esquema. Propina, pagamentos e
recebimentos ilegais, gastos secretos e até despesas pessoais do ex-presidente
Lula — tudo passava pela mão e pelo caixa do empresário.
AVALISTA – Lula foi informado sobre o pagamento ao chantagista (Ricardo Stuckert/PT)/VEJA
Durante anos, o
partido subornou parlamentares no Congresso com dinheiro subtraído do Banco do
Brasil, o que deu origem ao escândalo que ficou conhecido como mensalão e levou
catorze figurões para a cadeia, incluindo o próprio Marcos Valério. Desde
então, o empresário é um espectro que, a cada aparição, provoca calafrios nos
petistas. Em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) já o condenara como
operador do mensalão, Valério emitiu os primeiros sinais de que estaria disposto
a contar segredos que podiam comprometer gente graúda do partido em crimes
muito mais graves. Prometia revelar, por exemplo, o suposto envolvimento de
Lula com a morte de Celso Daniel, prefeito de Santo André, executado a tiros
depois de um misterioso sequestro, em 2002.

Na época, as
autoridades desconfiaram que a história era uma manobra diversionista. Mesmo
depois, o empresário pouco acrescentou ao que já se sabia sobre o caso.
Recentemente, no entanto, Valério resolveu contar tudo o que viu, ouviu e fez
durante uma ação deflagrada para blindar Lula e o PT das investigações sobre o
assassinato de Celso Daniel. Em um depoimento ao Ministério Público de São
Paulo, prestado no Departamento de Investigação de Homicídios de Minas Gerais,
a que VEJA teve acesso, o operador do mensalão declarou que Lula e outros
petistas graduados foram chantageados por um empresário de Santo André que
ameaçava implicá-los na morte de Celso Daniel. Mais: disse ter ouvido desse
empresário que o ex-presidente foi o mandante do assassinato. Até hoje, a morte
do prefeito é vista como um crime comum, sem motivação política, conforme
conclusão da Polícia Civil. Apesar disso, o promotor Roberto Wider Filho, por
considerar graves as informações colhidas, encaminhou o depoimento de Valério
ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do
Ministério Público, que o anexou a uma investigação sigilosa que está em curso.

CRIME POLÍTICO – Celso Daniel foi morto como queima de arquivo, em 2002 (Epitácio Pessoa/Estadão Conteúdo)/VEJA
No depoimento
ao MP, também gravado em vídeo, Valério repetiu uma história que contou em 2018
ao então juiz Sergio Moro, envolvendo na trama praticamente todo o alto-comando
petista — só que agora com mais detalhes e com Lula como personagem
fundamental. A história começa, segundo ele, em 2003, quando Gilberto Carvalho,
chefe de gabinete do presidente Lula, convocou-o para uma reunião no Palácio do
Planalto. No encontro, o anfitrião afirmou que o empresário Ronan Maria Pinto,
que participava de um esquema de cobrança de propina na prefeitura de Santo
André, ameaçava envolver a cúpula do Planalto no caso da morte de Celso Daniel.
“Marcos, nós estamos com um problema. O Ronan está nos chantageando, a mim, ao
presidente Lula e ao ministro José Dirceu, e preciso que você resolva”, teria
dito Carvalho. “Ele precisa de um recurso, e eu quero que você procure o Silvio
Pereira (ex-secretário-geral do PT)”, acrescentou. Valério conta que, antes de
deixar o Palácio, tentou levantar mais informações sobre a história com o então
ministro José Dirceu. “Zé, seguinte: o Gilberto está me pedindo para eu
procurar o Silvio Pereira para resolver um problema do Ronan Maria Pinto. Disse
que é uma chantagem”, narra Valério no depoimento. A resposta do então chefe da
Casa Civil teria sido curta e grossa: “Vá e resolva”.

Valério
compreendeu que “resolver” significava comprar o silêncio do chantagista. No
depoimento, ele relata que procurou o petista João Paulo Cunha, presidente da
Câmara dos Deputados, a quem uma de suas agências de publicidade prestava
serviços. Cunha, mais tarde condenado no mensalão, orientou-o a procurar o
deputado Professor Luizinho, que tinha sido vereador em Santo André e,
portanto, conhecia bem o problema.
Segundo o empresário, Luizinho lhe
confidenciou que Celso Daniel topou pagar com recursos da prefeitura a caravana
de Lula pelo país, antes da eleição presidencial de 2002, mas não teria
concordado em entregar a administração à ação de quadrilhas e àqueles que
visavam ao enriquecimento pessoal. “Uma coisa era o Celso bancar as despesas do
partido, da direção do partido e do próprio presidente. Outra era envolver a
prefeitura em casos que beiravam a ação de gângster”, teria afirmado o
deputado, conforme a versão de Valério. Seguindo a orientação recebida de
Gilberto Carvalho, Valério procurou Silvio Pereira (secretário-geral do PT) e
perguntou se o assunto era mesmo grave e se realmente envolvia Lula, Zé Dirceu
e Gilberto. Resposta: “Ele falou assim: ‘Esse assunto é mais sério do que você
imagina’.”. Pereira pediu então a Valério que se encontrasse com o chantagista.

A reunião,
segundo Valério, ocorreu num hotel em São Paulo. “Eu já avisei a quem eu devia
avisar, Marcos, eu não vou pagar o preço sozinho”, teria sido a ameaça de
Ronan. O então tesoureiro do PT, Delúbio Soares, preso no mensalão e no
petrolão, também estava no encontro. “Se não resolver o assunto, eu já senti,
esse homem vai explodir de vez, vai explodir o presidente, o Gilberto e o José
Dirceu”, disse Valério a Delúbio depois da reunião. O empresário e o tesoureiro
discutiram a melhor forma de arrumar o dinheiro para pagar a chantagem.
Deu-se,
então, o encontro do mensalão com o petrolão. O petista Ivan Guimarães, que à
época era presidente do Banco Popular do Brasil, lembrou os colegas de partido
de que fundos de pensão mantinham aplicações milionárias no Banco Schahin. Era
a hora de pedir uma retribuição. O banco aceitou fazer um “empréstimo” de 12
milhões de reais em troca de um contrato de operação com a Petrobras, no valor
de 1,6 bilhão de reais. O promotor Roberto Wider quis saber de Valério se ele
conversou com Lula sobre esse episódio. O empresário disse que sim. “Eu virei
para o presidente e falei assim: ‘Resolvi, presidente’. Ele falou assim:
‘Ótimo, graças a Deus’.”. Mas não foi apenas isso. Valério contou ao promotor
que Ronan Maria Pinto, quando exigiu dinheiro para ficar calado, declarou que
não ia “pagar o pato” sozinho e que iria citar o presidente Lula como “mandante
da morte” do prefeito de Santo André. Nas palavras de Valério, Ronan ia
“apontá-lo como cabeça da morte de Celso Daniel”.

Na história
recente da política brasileira, ninguém exerceu o papel de operador com tamanho
protagonismo como o empresário Marcos Valério. Dono de agências de publicidade,
Valério começou a atuar em esquemas de desvio de recursos públicos no governo
de Eduardo Azeredo (PSDB), em Minas Gerais. Petistas mineiros conheciam muito
bem os bons serviços prestados por ele aos rivais tucanos. Por isso, tão logo
Lula assumiu a Presidência da República, abriram-se as portas do governo
federal ao empresário. Rapidamente, Valério se tornou o homem do dinheiro sujo
do PT e, nessa condição, cumpriu de missões prosaicas a estratégicas.
Ele conta
que se reunia com o então presidente ao menos uma vez por mês. Palpitava até
sobre a indicação de ministros. A compra de apoio parlamentar era realizada às
sombras, numa engenhosa operação financeira que envolvia bancos, dirigentes de
partidos e dezenas de políticos — tudo na surdina. O empresário só assumiu o
centro do tablado depois de VEJA revelar, em 2005, que o PTB operava um esquema
de cobrança de propina nos Correios. Sentindo-se pressionado, Roberto
Jefferson, o mandachuva do partido, reagiu delatando o mensalão e apresentando
ao país o “carequinha” que operava os cofres clandestinos do PT. O resto da
história é conhecido. O STF reconheceu a existência do esquema de suborno ao
Congresso, considerou-o uma tentativa do PT de se perpetuar no poder e condenou
os mensaleiros à cadeia. Lula, apesar de ser o beneficiado principal do
esquema, nem sequer foi processado.

Por causa
disso, Valério sempre pairou como um fantasma sobre o PT e seus dirigentes. No
auge das investigações sobre o mensalão, ele próprio tentou chantagear o
partido dizendo que se não recebesse uma bolada implicaria o então presidente
da República no caso. Anos mais tarde, uma reportagem de VEJA revelou que a
chantagem surtiu efeito, e o dinheiro foi depositado numa conta dele no
exterior por um empreiteiro amigo. Durante a CPI dos Correios, Valério de fato
poupou Lula. Ele só testemunhou contra o ex-presidente quando já estava
condenado pelo Supremo. No depoimento ao MP, Valério disse que não aceitou
pagar ao chantagista Ronan Maria Pinto do próprio bolso, como queriam os
petistas, mas admitiu ter participado do desenho da transação realizada para
levantar os recursos. De onde eles vieram? Do petrolão, o sucessor do mensalão.

As
investigações da Operação Lava-Jato já confirmaram metade da história narrada
por Marcos Valério. Para quitar a extorsão, o Banco Schahin “emprestou” o
dinheiro para o empresário José Carlos Bumlai, amigo de Lula, que pagou ao
chantagista. O banco já admitiu à Justiça a triangulação com o PT. Ronan Maria
Pinto já foi condenado pelo juiz Sergio Moro por crime de corrupção e está
preso. Valério revelou mais um dado intrigante. Segundo ele, dos 12 milhões de
reais “emprestados” pelo banco, 6 milhões foram para Ronan e a outra parte foi
entregue ao petista Jacó Bittar, amigo de Lula e ex-conselheiro da Petrobras.
Jacó também é pai de Fernando Bittar, que consta como um dos donos do famoso
sítio de Atibaia, que Lula frequentava quando deixou a Presidência. As
empreiteiras envolvidas no petrolão realizaram obras no sítio à pedido do
ex-presidente, o que lhe rendeu uma condenação de doze anos e onze meses de
prisão.
No interrogatório, o promotor encarregado do caso perguntou a Marcos
Valério se havia alguma relação entre o dinheiro transferido a Bittar e a
compra do sítio. Valério respondeu simplesmente que “tudo se relaciona”. O
promotor também perguntou sobre as relações financeiras do empresário com o
governo e com o ex-presidente Lula:
“— O caixa
que o senhor administrava era dinheiro de corrupção?”
“— Caixa dois e dinheiros paralelos de corrupção, propina e tudo.”
“— Do Governo Federal?”
“— Sim, do Governo Federal.”
“— Na Presidência de Lula?”
“— Na Presidência do presidente Lula.”
“— Pagamentos para quem?”
“— Para deputados, para ministros, despesas pessoais do presidente, todo tipo
de despesa do Partido dos Trabalhadores”.
Condenado a
mais de cinquenta anos de cadeia, Valério começou a cumprir pena em regime
fechado em 2013. Em setembro passado, progrediu para o regime semiaberto, o que
lhe dá o direito de sair da cadeia durante o dia para trabalhar. O cumprimento
de suas penas nunca ocorreu sem sobressaltos. Ele já foi torturado num presídio
e teve os dentes quebrados. Em 2008, quando esteve preso em decorrência de um
processo aberto para investigar compra de prestígio, Valério foi surrado por
colegas de cela que, segundo ele, estariam a serviço de petistas.
Essa crença
se sustenta numa conversa que o empresário teve, anos antes, com Paulo
Okamotto, amigo e braço-direito de Lula. “Marcos, uma turma do partido acha que
nós devíamos fazer com você o que foi feito com o prefeito Celso Daniel. Mas eu
não, eu acho que nós devemos manter esse diálogo com você. Então, tenha juízo”,
teria lhe dito Okamotto. “Eu não sou o Celso Daniel não. Eu fiz vários DVDs,
Paulo, e, se me acontecer qualquer coisa, esses DVDs vão para a imprensa”, rebateu
o empresário, segundo seu próprio relato.

Até hoje, o
assassinato de Celso Daniel é alvo de múltiplas teorias. A polícia concluiu que
o crime foi comum. Já o Ministério Público sempre suspeitou de motivação
política, principalmente diante das evidências de que havia um esquema de
cobrança de propina de empresas de transporte público em Santo André, que teria
irrigado o caixa do PT. Se Valério estiver dizendo a verdade — e é isso que as
novas investigações se propõem a descobrir —, a morte do prefeito teria o
objetivo de esconder que a prefeitura de Santo André funcionava como uma gazua
do PT para financiar não só as campanhas políticas mas a boa vida de seus
dirigentes, incluindo Lula. A morte de Celso Daniel, portanto, poderia ter sido
realmente uma queima de arquivo. Irmãos do prefeito assassinado concordam com
essa tese e sempre defenderam a ideia de que a possível participação de
petistas no crime deveria ser apurada. O novo depoimento, embora não traga uma
prova concreta, colocou mais fogo numa velha história.